(Do nosso queridíssimo escritor nordestino Graciliano Ramos)
Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença.Certos atos parecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez. Tudo aquilo era uma confusão, em que avultava a ideia de reaver Marina. Mais de um mês, quase dois meses em intimidade com o outro. Procurei por todos os meios uma nova aproximação. O despeito, a raiva que senti naqueles dias compridos, uns restos de amor próprio, tudo sumiu. À tarde voltava a sentar-me na espreguiçadeira, abria um livro. Marina ausente. Deitava-me, fingia dormir. Ficava uma hora espiando o quintal vizinho através das pestanas meio cerradas. As galinhas ciscavam.D. Adélia cantava no banheiro, a sombra da mangueira crescia além do muro, a mulher que lava garrafas trabalhava sacolejando-se num ritmo de batuque e um homem triste enchia dornas. Às vezes passos apressados revelavam-me a presença de Marina. Eu tinha vergonha de abrir nos olhos e quando me decidia a acordar, já ela estava longe.
Sugestões para Professores:
.Analisar a primeira linha do texto.
.Identificar uma narrativa psicológica, através das frases que indicam o fluir da memória.
Procurem ler o livro ANGÚSTIA – é uma obra das mais densas de Graciliano.
Traz a amarga confissão de Luís da Silva, um indivíduo que sofre a dolorosa frustração de ter assassinado seu rival Julião Tavares que lhe roubara a noiva Marina e passa a vida inteira consumido em remorsos.
É a personagem – narradora do livro, por isso escrito na 1ª pessoa, um medíocre jornalista do interior que se julga um “joão- ninguém” e acha que escrever o livro é uma forma de libertação.
ANGÚSTIA presta-se a muitas análises das mais interessantes.